Mais um polêmico julgamento teve início no Superior Tribunal de Justiça- STJ
envolvendo investigação de paternidade. Dois irmãos adultos, próximos dos 50 anos
de idade, movem ação contra o pai biológico, no afã de obter o reconhecimento da
paternidade e as respectivas consequências jurídicas. No caso, os irmãos têm pai
socioafetivo, o marido da mãe, que espontaneamente os registrou como filhos quando
eles ainda eram pequenos. O pai biológico, um famoso empresário, nunca antes soube
da existência dos filhos.
O julgamento foi interrompido pelo pedido de vistas do Ministro Marco Aurélio
Bellizze, que pretende melhor analisar a possibilidade do pedido promovido por um
adulto com cerca de 50 anos. Já, para o Relator do caso, Ministro Paulo Tarso Vieira
Sanseverino, a busca da paternidade é direito personalíssimo, indisponível e
imprescritível, sendo possível seu reconhecimento mesmo sem alteração registral.
Ações de investigação de paternidade promovidas por adultos formados, muitas vezes
após várias décadas do nascimento, é relativamente comum e curiosamente os réus e
supostos pais ostentam algum patrimônio passível de sucessão hereditária. Alguém
mover uma ação desta natureza, após meio século do nascimento, com a consequente
participação na sucessão do suposto pai biológico, do qual jamais estreitou qualquer
laço, não me parece razoável.
Concordo com o eminente Ministro Paulo Tarso, a busca da paternidade é direito
personalíssimo, indisponível e imprescritível, mas, por mais contraditório que pareça,
tem limite e o direito não pode socorrer pretensões como estas. A meu ver a pretensão
de conhecer a ascendência biológica, com a finalidade de prevenir eventuais doenças e
até mesmo por mera curiosidade é lídima e justa, mas pretender com isso as
consequências sucessórias, a alteração no registro civil, a modificação do nome e a
declaração da paternidade é inaceitável.
Assim como o caso dos irmãos, autores da ação comentada, outros casos se
assemelham quanto a existência de um pai socioafetivo, que inclusive registrou-os
como filhos. Ora, o conceito de filiação se baseia na relação existente entre pessoas em
função dos laços afetivos, e nunca da consanguinidade. Inquestionável tal assertiva,
bastando uma simples leitura do disposto no art. 1.596 e seguintes do Código Civil,
onde não há mais a figura dos filhos legítimos e ilegítimos, como era previsto no art.
337, do Código de 1916.
Muito bem esclarecido, nas Jornadas de Direito Civil realizada pelo CNJ, à exemplo
do Enunciado 103 (I Jornada) que reconhece as várias espécies de parentesco, no art.
1.593, do CC.
Enunciado 103: “Art. 1.593: O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele
decorrente da adoção, acolhendo, assim, 30 Enunciados aprovados a noção de que há também parentesco civil no
vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou
mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho.”
Ainda, Enunciado 108 (I Jornada), que interpreta o art. 1.603, do CC, a filiação é
reconhecida pela Certidão de Nascimento não apenas para filiação consanguínea mas
também a socioafetiva.
Enunciado 108: “Art. 1.603: No fato jurídico do
nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à
luz do disposto no art. 1.593, a filiação consangüínea e
também a socioafetiva.”
Outrossim, o Enunciado 256 (III Jornada), reconhece que a posse de estado de filho,
também conhecida por parentalidade socioafetiva, nada mais é do que uma espécie de
parentesco civil.
Enunciado 256: “Art. 1.593: A posse do estado de filho
(parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de
parentesco civil.”
Assim, indiscutível que a filiação socioafetiva desdobra-se com efeitos idênticos às
demais formas de filiação, como aquela fruto da relação biológica, ou como aquela
advinda da “Adoção à Brasileira”, ou como Aquela proveniente do “Filho de Criação”.
Por esta premissa, em primeiro lugar, temos que a pretensão consectária da
investigação de paternidade – modificação da filiação, alteração no registro civil e
direitos sucessórios – é inviável, pois já consagrado pelo direito e pelo tempo a filiação
(no caso socioafetiva). No máximo, como já sustentado, poderia haver o conhecimento
da ascendência biológica ou verdade genética.
Aliás, importante lembrar o disposto no art. 1.604, do Código Civil, que determina que
ninguém poderá reclamar estado contrário àquele registrado na Certidão de
Nascimento, salvo por erro ou falsidade.
“Art. 1.604. Ninguém pode vindicar estado contrário ao
que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se
erro ou falsidade do registro.”
Há situações que explicam claramente a impossibilidade de desconstituição da filiação
socioafetiva, como, por exemplo, a “Adoção à Brasileira”. Apesar da ilegalidade do
ato, o qual, inclusive, é crime, não cabe a desconstituição do registro em face de
relação socioafetiva anteriormente estabelecida. A importância do tema e a previsão de
conflitos, como o do caso em tela, já motivou a propositura do Projeto Lei nº 2.285/2007, o qual nos ensina que: qualquer pessoa cuja a filiação seja proveniente de adoção, filiação socioafetiva, posse de estado ou inseminação artificial heteróloga, o conhecimento do seu vínculo genético, contudo, sem gerar relação de parentesco.
Art. 77. É admissível a qualquer pessoa, cuja filiação seja
proveniente de adoção, filiação socioafetiva, posse de
estado ou de inseminação artificial heteróloga, o
conhecimento de seu vínculo genético sem gerar relação
de parentesco. (g.m.)
Ainda, no Direito Comparado, o Código Civil Francês, em 1972, já previa possíveis e
ímprobas intenções de reconhecimento de filiação, com o mero objetivo patrimonial.
O art. 322 prevê que o registro de nascimento aliado à posse do estado de filho torna a
filiação inatacável, sendo impossível, portanto, outra filiação ser estabelecida. O
Código Civil Boliviano tem disposição semelhante (art. 192). Nesses países, portanto,
a posse de estado prepondera tanto sobre a paternidade biológica quanto sobre a
jurídica.
Outrossim, o registro de paternidade, levado à efeito pelo marido da genitora dos
Autores, se deu em situação assemelhada com a adoção à brasileira, sendo, portanto,
ato irrevogável. Ora, somente poder-se-ia alterar o registro mediante confirmação
irrefutável de que houve vício de consentimento, neste sentido, a título meramente
ilustrativo, colaciona-se o julgado proferido no REsp nº 1.003.628 – Rel. Ministra
Nancy Andrighi 3 ª Turma j. 18.12.08:
“….o reconhecimento espontâneo da paternidade somente
pode ser desfeito quando demonstrado o vício de
consentimento, isto é, para que haja possibilidade de
anulação do registro de nascimento de menor cuja
paternidade foi reconhecida, é necessária prova robusta no
sentido de que o pai registral, foi de fato, por exemplo,
induzido a erro, ou ainda, que tenha sido coagido a tanto”
Assim, de fato a busca da paternidade é direito personalíssimo, indisponível e
imprescritível, contudo, os consectários desta busca, consubstanciados na modificação
do registro civil, no reconhecimento da paternidade e no direito sucessório têm limite
quando esbarram nas condições acima, servindo, a ação de investigação, tão somente
para o conhecimento da ascendência biológica.