O Tribunal Regional Federal, da 3ª Região – São Paulo, determinou a proibição de
qualquer sansão ou medida ético-disciplinar que possa ser promovida pelo Conselho
Regional de Medicina de São Paulo-CRM/SP, em face de médico responsável pelo
tratamento de Fertilização in vitro – FIV da paciente Autora da Ação, em derradeira
autorização para a mulher submeter-se ao tratamento de FIV com o uso de óvulos
doados pela irmã.
Explico melhor: Em apertada síntese, fertilização in vitro (FIV) consiste em técnica de
reprodução humana medicamente assistida. Realiza-se, na mulher, uma prévia
estimulação ovariana, por meio de medicamentos adequados e com o
acompanhamento de médico especialista, que define a data adequada para, com o uso
de uma agulha especial, captar o óvulo. Nesta mesma data é feita a coleta dos
espermatozoides do marido e, em ambiente laboratorial (in vitro), é fecundado este
óvulo e desta fecundação é gerado o zigoto. Este, formado por uma única célula, se
multiplica em mais células, formando o pré-embrião (só é considerado embrião
quando transferido para a cavidade uterina). O pré-embrião formado por tal
fecundação é então transferido artificialmente para a cavidade uterina da mulher onde
se espera a concepção da gravidez.
Ainda, é importante compreendermos que existem dois tipos de inseminação artificial:
a homóloga, promovida com o uso do material genético dos próprios cônjuges
(espermatozoide do marido e óvulo da esposa), como também a heteróloga,
fecundação realizada com material genético de pelo menos um terceiro, aproveitando
ou não os gametas (espermatozoide e óvulo) de um ou de outro cônjuge. Nesta
(heteróloga) utiliza-se pelo menos um gameta doado (doação anônima).
O Conselho Federal de Medicina – CFM, por meio da Resolução 2.168/2017,
estabelece norma de conduta ética, dentre outras, no acompanhamento médico de
tratamentos de FIV. Estabelece a Resolução que na doação de gametas ou embriões os
receptores não poderão conhecer os doadores, ou seja, o casal que necessite da doação
de um gameta ou até mesmo embrião para se valer do tratamento de FIV, não poderá
conhecer o doador, somente haverá doação anônima.
A proibição ética visa resguardar a identidade do doador e receptor e evitar os riscos
do questionamento da filiação biológica e eventuais desdobros e consequências
jurídicas desta filiação, o que poderia levar a uma desestabilização nas relações
familiares e injustas consequências. Também, desestimula a comercialização de
gametas e embriões, o que é vedado pela Constituição Brasileira.
No caso, recentemente julgado, a mulher socorreu-se do Poder Judiciário para permitir
ao seu médico que faça o tratamento de FIV com o uso do embrião de sua irmã, sem
que ele médico seja responsabilizado por conduta aética e punido pelo CRM.
Importante fundamento para decidir, reside guarida no fato de que, com supedâneo na
estrutura jurídica havida entre o casal e a doadora, consubstanciado no tratamento de FIV e nos termos de consentimento firmados pelas partes, eventual direito de filiação entre a criança e a doadora cairá por terra, especialmente quanto aos sucessórios.
A exemplo, a possibilidade de ações de investigação de paternidade, promovidas por
pessoas geradas por FIV heteróloga contra supostos doadores de gametas, só tem
cabimento na esteira de conhecimento da ascendência biológica, ou verdade genética,
com o único propósito de prevenir doenças genéticas e jamais com o afã de obter
direitos advindos da filiação, especialmente sucessórios.
A respeito disso, o disposto no art. 77, do Projeto Lei nº 2.285/2007, nos ensina que à
qualquer pessoa cuja a filiação seja proveniente de adoção, filiação socioafetiva, posse
de estado ou inseminação artificial heteróloga, é admissível o conhecimento do seu
vínculo genético, contudo, sem gerar relação de parentesco.
Art. 77. É admissível a qualquer pessoa, cuja filiação seja
proveniente de adoção, filiação socioafetiva, posse de
estado ou de inseminação artificial heteróloga, o
conhecimento de seu vínculo genético sem gerar relação
de parentesco. (g.m.)
O dispositivo em comento reconhece o direito ao conhecimento da ascendência
biológica, para que todos conheçam ou possam conhecer as coincidências genéticas e
prevenir doenças, ou meramente por curiosidade, mas tal direito jamais poderá gerar
relação de parentesco para efeitos patrimoniais. A lei, doutrina e jurisprudência já vêm
repudiando tais pretensões.
O Código Civil Francês, em 1972, já previa possíveis e ímprobas intenções de
reconhecimento de filiação, com o mero objetivo patrimonial. O art. 322 prevê que o
registro de nascimento aliado à posse do estado de filho torna a filiação inatacável,
sendo impossível, portanto, outra filiação ser estabelecida.
Ao mesmo tempo, segundo aquele artigo, a ausência da posse de estado de filho torna
a filiação apenas baseada no título jurídico bastante frágil, podendo ser questionada
por qualquer homem que deseje ver reconhecido o seu vínculo com a criança.
O Código Civil Boliviano tem disposição semelhante (art. 192). Nesses países,
portanto, a posse de estado prepondera tanto sobre a paternidade biológica quanto
sobre a jurídica.
Portanto, possível a permissão para a o tratamento de FIV com óvulo doado por
parente, sem que com isso gere consequências jurídicas de filiação entre doadora e
criança. Contudo, as razões da Resolução do CFM são válidas e devem ser protegidas,
de tal modo que tais exceções, definidas pelo Poder Judiciário, devem vir
acompanhadas de criterioso e cuidadoso exame do caso concreto, evitando-se ao máximo eventuais prejuízos às estruturas familiares que se constroem a partir desta técnica médica, enquanto não se editarem normas a respeito.