Aquele conceito sobre família que o Brasil construiu ao longo de décadas foi mudado do dia para a noite. Conclusões importantes alcançadas por estudos completos e sofisticados, sobre os diversos tipos de família encontrados em nossa sociedade simplesmente foram ignoradas. Não apenas lamentável, mas a aprovação do Projeto Lei 6583/2013, que define como família o núcleo formado a partir da união entre um homem e uma mulher, representa um inaceitável retrocesso.
“Famílias” se escreve no plural. O Brasil, em especial, é formado por um universo de pessoas em diversidade e indiscutivelmente existem várias formas de núcleo familiar que merecem não apenas o nosso respeito e reconhecimento mas também a proteção do estado, não o contrário. Como é possível negar famílias constituídas por avós e netos, por irmãos, entre solteiros e filhos adotados, entre solteiros e filhos biológicos, por pessoas do mesmo sexo, entre casais que têm filhos gerados por fertilização in vitro, entre pessoas do mesmo sexo e filhos adotados, por casais sem filho, enfim, entre tantas formas de família unidas por laços genéticos ou amor? De fato, o PL negou vigência à base de toda sociedade: a família.
A Câmara dos Deputados aprovou o estatuto por dezessete (17) votos a favor versos apenas cinco (5) votos contra e este fato é mais lamentável que o próprio efeito prático da norma. Isso porque o PL é flagrantemente inconstitucional e não levará muito tempo para esta inconstitucionalidade ser declarada pelo Supremo Tribunal Federal.
O STF já decidiu, na lavra do eminente Ministro Ayres Britto, em vanguardista julgamento, sobre o reconhecimento da existência de vários tipos de núcleo familiar, quando atribuiu ao artigo 1.723, do Código Civil, interpretação excluindo qualquer ideia que prejudique o reconhecimento da “união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família”. Ainda, “o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica.” (STF – Pleno, ADPF-132, ADI 4277/DF, Rel. Min. Ayres Britto, DJ-e 13/10/2011, p. 625-656).
O assunto, cujo o pano de fundo é o respeito às diferenças e a vedação à discriminação em razão de sua etnia, religião ou orientação sexual, já foi debatido nas cortes superiores, como o emblemático julgamento no Superior Tribunal de Justiça que, em 2011, reconheceu o casamento civil, inclusive celebrado por meio de habilitação perante o Registro Civil.
A propósito, o tema exemplifica de maneira didática a função contramajoritário do Poder Judiciário, especialmente da corte suprema, consoante o excelso julgado da lavra do eminente Ministro Luis Felipe Salomão:
“Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo ‘democraticamente’ decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário – e não o Legislativo – que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias” (REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012)”
A função contramajoritária, típica do STF, não poderia mesmo ser esperada pelo Poder Legislativo, composto por representantes da maioria, e da maioria dependem sua hegemonia e poder, certamente não defenderão os interesses das minorias.
Ainda, na esteira do atual entendimento jurídico em comento, o casamento homoafetivo foi regulamentado pela Resolução 175 do CNJ, publicado em maio de 2013, que determinou a todos os Registros Civis que habilitem os casamentos civis entre casais do mesmo sexo:
Artigo 1º: É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo.
Como se vê e repisa-se, o lamentável é o discurso político de ódio às diferenças e minorias, é o lamentável discurso dolosamente elucubrado por alguns políticos para angariar votos, seja por absoluta ignorância, ou por odiosa intolerância de alguns eleitores, porque seu (Estatuto da Família) desiderato não produzirá nenhum efeito diante da sua flagrante inconstitucionalidade.
O curioso paradoxo na pretensão do relator da comentada norma é que o Estatuto da Família, em sendo sancionada, somente corroborará o atual entendimento acima exemplificado. Ora, se sancionada será declarada inconstitucional. Em assim sendo, haverá a normatização do tema, como também o fim do discurso de intolerância aproveitado por alguns políticos, em derradeiro sentido contrário à vontade do Estatuto da Família.